Eu achei engraçado, mas o juiz
depois me informou depois que o comportamento do militar idoso, cheio de
condecorações no peito, a bater continência quando ingressou na sala, era praxe
de caserna desnecessária no tribunal, mas que deveria ser compreendido como uma
boca torta para sempre por causa do uso do cachimbo. Disse isso e não conteve
uma leve entortada de boca – que nada tinha a ver com o uso de cachimbo: era um
riso de galhofa, mesmo.
Depois da pantomima do oficial, a
sessão não se iniciou, pois o autor ainda não chegara ainda. O advogado do réu
cheio de medalhas virava e revirava a valise em busca talvez de nenhum papel,
mas de controlar sua impaciência. O juiz olhava para mim erguendo e baixando as
sobrancelhas, numa expressão circunspecta entre indagativa e marota.
O advogado do autor, por sua vez, fingia que o assunto não era com ele, pois embora o juiz lhe fizesse indagações nos mesmos termos, estas não se refletiam em um só músculo de sua face. Fazia papel de mouco, mais tarde admitiu o próprio juiz.
O advogado do autor, por sua vez, fingia que o assunto não era com ele, pois embora o juiz lhe fizesse indagações nos mesmos termos, estas não se refletiam em um só músculo de sua face. Fazia papel de mouco, mais tarde admitiu o próprio juiz.
Enfim, chegou o autor, barba
ensebada, olhos sonados, bolinhas e fiapos de cobertor grudados nos cabelos
embolados feito ninho de rato.
Aos vinte e quatro anos de idade
o autor queria a manutenção da pensão do pai que, após os salamaleques
militares ao ingressar na sala de audiência, manteve-se em completo recato, no
que era acompanhado por seu advogado.
“Mas por que o senhor deseja a
pensão de seu pai?”, quis saber o Meritíssimo. “É que eu estudo”, respondeu o
rapaz, que também estava de sandálias de dedos. O Meritíssimo olhou com
desgosto as unhas dos pés mal cortadas e sujas de resíduos escuros e espessos do
autor do processo.
“No entanto”, tornou o juiz,
buscando esquecer a visão das unhas imundas, “o senhor poderia trabalhar um
período e sustentar seus próprios estudos”. O Meritíssimo tentou afastar o
sentimento, mas a farda velha, puída e descorada do velho e frágil oficial o
comoveu. Nessas horas é melhor se escrevente, seguramente pensou. Entreguei-lhe
uma folha do processo, que eu destacara já prevendo algum enrosco.
“Mas aqui diz que o senhor não
estuda, isso confere com a verdade...”, o juiz indagou num tom nem de
incriminação, nem de absolvição, num tom, por assim dizer, neutro – porém ele
tirou os olhos da folha e voltou-os para a roupa antiga e, na verdade, humilde
do senhor mirrado a sua direita, que, no entanto, mantinha postura digna,
embora metido naqueles trapos enfeitados com pingentes de metal já sem brilho,
mais se semelhasse a um triste Pierrô.
“Mas eu preciso da pensão para
estudar, Meritíssimo”, disse o filho do militar, que se mantinha firme em sua
postura hierática.
“Ah”, insistiu o Meritíssimo,
“então, o senhor vai retomar os estudos quando passar a receber o dinheiro de
seu pai novamente”.
“É”, respondeu o rapaz, na
verdade um marmanjo que mastigou alho antes de entrar na sala de audiências
para disfarçar o hálito de ressaca.
“Suponho que seu pai suspendeu a
remessa do dinheiro porque o senhor não estava estudando...”, sugeriu o juiz.
“É”.
O Meritíssimo devolveu-me a folha
um tanto amarrotada, e ainda teve tempo para ouvir esta frase do autor da ação:
“Mas se a pensão voltar,
Meritíssimo, começo a estudar na hora – e olha que eu estudo com afinco!”
O juiz voltou-se com discrição
para a figura de d. Quixote do velho militar, e não pode conter o pensamento
que se insinuou em sua mente e que se estampou como uma placa em sua testa:
“Onde foi que o senhor errou, senhor coronel, onde, para merecer esse...”
Ele não pensou essa palavra, mas eu sim: vagabundo.
Inês Regina Pereira (codinone) é escrevente do poder judiciário paulista. Reuniu durante anos apontamentos sobre audiências na Vara de Família em que trabalhou até se aposentar no ano de 2010. Para preservar pessoas e instituições, ela embaralha um pouco os nomes e as referências. Todavia, tudo que aqui se publicar é com base em fatos reais. Caso alguém se sinta prejudicado, solicitamos o envio de reclamação à redação, e ela será prontamente enviada servidora aposentada, que é responsável pelo que escreve e terá prazer de responder em público ou privadamente os comentários. Escreve todas as quintas-feiras para o blog da editora Nova Alexandria a coluna Vara de Família.
0 comentários:
Postar um comentário